A humanidade de Lara Croft | PARTE I: Primeiras impressões

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Dentro do fandom, são comuns as comparações entre as diferentes interpretações de Lara Croft. Sua versão atual, consolidada em 2013 através de um reboot completo da franquia, foi vendida como uma personagem "mais humana e realista" em contraste com as versões anteriores. Mas será que essas mudanças realmente conferiram mais humanidade à personagem? O quanto essa Lara faz sentido? E o quanto as anteriores faziam? Acompanhe esse histórico sobre as características da personagem e o que mudou no decorrer da franquia.

Na década de 90, o marketing do jogo anunciava Lady Croft como uma mulher sexy, invencível, intrépida ao exagero. Nos trailers dos jogos e até mesmo em propagandas de TV, era praticamente imbatível. O destaque vai para uma propaganda da bebida Lucozade, da qual Lara toma um gole e em seguida manda sarcásticos beijinhos para os inimigos, aterrorizando-os imediatamente. Como se soubesse e abusasse do seu poder de protagonismo, a Lara Croft idealizada não tinha medo de absolutamente nada. Era perfeita, sequer tropeçava.

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Cena de um dos comerciais da Lucozade.
Mas não tome conclusões ainda: Lara não era essa boneca perfeita e infalível durante os gameplays. Nas suas aventuras, ocasionalmente demonstrava suas imperfeições e sentimentos, ainda que sua expressão facial ficasse congelada devido às limitações tecnológicas da época.

Tomb Raider (1996)
Nota: Se desejar, assista às cinemáticas do jogo legendadas aqui.

Em 1996, fomos apresentados àquela que viria a se tornar a figura feminina mais relevante dos videogames. Lady Croft já começou o jogo com uma resposta merecidamente debochada para a pergunta desnecessária de seu "colega" Larson — obrigado, Lara, é assim que se reage a "piadinhas" machistas. A primeira cinemática já mostrou quem ela era: uma mulher sarcástica, curiosa e rica. Ela gostava de mistérios e de coisas perigosas. "Provavelmente é uma daquelas pessoas malucas que arriscam a vida em esportes radicais", você poderia pensar. E era mesmo: depois de uma conversa com a empresária Jacqueline Natla, Lara partiu para uma expedição nas montanhas gélidas do Peru, em busca do Scion, um poderoso artefato que contém os segredos da cidade perdida de Atlantis.

"I only play for sports" ("Eu trabalho apenas por esporte"), diz Lara, após Natla tentar contratá-la para buscar o artefato.
Logo no início da aventura, Lara escalou por um alto portão utilizando uma corda, com objetivo de acionar uma alavanca construída inconvenientemente a uns 10 metros do chão. Seu companheiro de viagem a aguardava em solo — o jogo não deu informações sobre quem ele era, mas presumia-se que fosse alguém contratado por Lara para acompanhá-la em sua expedição.

O FMV (full motion video) era um recurso tecnológico que permitia que Lara tivesse diferentes expressões faciais. O modelo jogável de Lara, no entanto, tinha a face "congelada" e com expressão neutra.
Subitamente, surgiu uma pequena alcateia, que atacou o pobre homem. Lara não exitou em ajudá-lo: numa jogada arriscada, rapidamente puxou uma faca, cortou a corda e se deixou cair de uma altura perigosa, atirando contra os lobos.

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Infelizmente, os violentos lupinos conseguiram o que queriam, e Lara presenciou seu colega morrer diante dela. Apesar de ter arriscado sua própria vida para salvá-lo, Lady Croft era notadamente uma pessoa fria. Aqui se observou uma característica importante da nossa anti-heroína: a maneira com que lida com a morte. Sendo uma ladra experiente capaz de matar a sangue frio, Lara não era o tipo de pessoa que se derretia em prantos sobre um caixão em um velório. Evidentemente, isso não a tornava menos humana. Ela se importava com quem se importava com ela, se arriscava se fosse preciso, lamentava suas perdas, mas não se deixava abater com uma morte — a vida segue.

Lara lamenta a morte de seu colega, mas não se deixa abalar por isso.
Além de seus atributos emocionais, fazia parte da construção da personagem seu vestuário característico: os icônicos shorts e regata azul esverdeada. Não era exatamente uma roupa adequada para o frio do Peru, mas lembremos que Lara estava usando um poncho no início da cena, e o "perdeu" durante o repentino e trágico ataque dos lobos. Parece ter sido uma boa estratégia dos criadores do game, já que queriam manter a Lara durante todo o jogo com a roupa clássica, e ao mesmo tempo evitar o questionamento do porquê uma mulher iria para um lugar tão gelado sem nenhum agasalho.


Ora, admitamos que a caracterização de Lara poderia ter sido outra. Eles poderiam tê-la feito de calças, que é muito mais adequado para qualquer aventura perigosa. Também poderiam, claro, não ter exagerado nos seus atributos físicos. Por ora, vamos assumir que a personagem Lara Croft foi pensada como uma mulher que adora seus shorts, e que provavelmente gosta de se sentir sexy sem ser julgada por isso. Nada que a nossa suspensão de descrença não consiga suportar. Então, voltando ao assunto principal, Lara estava de shorts na neve porque perdeu seu agasalho. Dentro da proposta do jogo, foi aceitável.

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A primeira fase do primeiro Tomb Raider. Lara usava sua roupa clássica, mas não tinha tranças, porque a tecnologia da época não permitia.
Na sequência da aventura, houve um momento em que Lara se deparou com Natla e seus capangas, que a cercaram, assaltaram-na e tentaram matá-la cruelmente. Croft, então, mandou sarcásticos beijinhos para eles e venceu a luta com suas perfeitas habilidades, só que não. Não estamos falando da Lara Croft idealizada da propaganda da Lucozade, mas da Lara "real". Estando em minoria e sem armas, ela não tinha chances, então fugiu dali como pôde. Os desgraçados, logo em seguida, partiram de barco.


Numa cena épica envolvendo pilotagem de moto e habilidades com nado, Lara conseguiu alcançar o barco e se escondeu em uma cabine. Exausta por sua longa expedição no Egito, ela caiu sobre tecidos — aparentemente bem confortáveis — e dormiu profundamente, como alguém que acabara de completar uma jornada intensa de trabalho pegando quatro conduções lotadas. Para quem deveria ser perfeita e infalível, Lady Croft tinha limitações físicas demais.

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Descanse, Lara. Ninguém é de ferro.
Primeiras impressões

A personagem Lara Croft foi apresentada como uma anti-heroína sarcástica, aventureira e desapegada. O enredo não trouxe conflitos pessoais para a protagonista, mas notou-se a construção de uma personagem que, embora fosse bastante habilidosa, não era perfeita, tampouco indestrutível. Seus momentos de fraqueza foram suficientes para demonstrar isso.

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Além do mais, qualquer comentário sobre o primeiro Tomb Raider deve levar em conta o fato de que ele foi um "jogo de teste", um risco para a equipe da Core Design frente o mercado de jogos de sua época. Ninguém sabia que a franquia faria tanto sucesso, e o primeiro jogo foi construído provavelmente com menos recursos financeiros e tecnológicos. Evidência disso é a simplicidade do produto final: há poucos detalhes e poucos objetos nos cenários, a história não tem muitas camadas e as questões pessoais da Lara não são trabalhadas com profundidade. Lara, inclusive, utiliza o mesmo traje durante todo o jogo, desde os cenários frios do Peru até as abafadas câmaras de lava dos templos atlanteanos. Apesar de tudo, a Core Design trouxe uma personagem bem sólida e à frente do seu tempo. "I only play for sports" talvez tenha sido a frase mais representativa dita por nossa arqueóloga, pois, antes mesmo de o jogo começar, já revela ao jogador que Lara faz o que faz porque gosta, e porque provavelmente está agindo para deixar sua marca no mundo. Evidentemente, o sucesso foi tanto que Tomb Raider se tornou uma máquina de dinheiro para a Core Design.

Naturalmente, os próximos jogos apresentam uma Lara cada vez mais expressiva, com roupas e acessórios diferenciados e mais adequados para cada aventura, cenários mais imersivos e complexos, além de enredos mais dramáticos, aprofundados  e multifacetados.

Acompanhe essa série de artigos, dividida em 10 partes, que abordará toda a franquia sob uma perspectiva das características psicológicas da personagem. Leia aqui a Parte 2.

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