Fãs Polarizados

Papo sério, galera! Este texto é baseado em fatos reais!


 

No passado, não existia "o fã do clássico" e "o fã do reboot", era simplesmente "o fã de Tomb Raider". Aliás, até existia em algum nível, por causa do mini-reboot que a franquia sofreu em 2006, o Tomb Raider Legend. No entanto, não é nada comparado aos últimos desentendimentos entre os fãs de Lara Croft. Seus conflitos foram mais intensos que os anteriores, e se caracterizaram por um problema mais estrutural: uma polarização, essa maldição que parece atingir a todos os temas da nossa vida nos dias de hoje. Na internet, brigamos por tudo, sempre assumindo um lado: Xbox versus PlayStation, Marvel ­versus DC, Tomb Raider clássico versus Tomb Raider reboot. Estamos polarizados, e isso não somente impede que entendamos o ponto de vista do outro, mas também que façamos autocrítica. Também faz com que confundamos opiniões com fatos e vice-versa, ou que ataquemos pessoas que não têm culpa de nada, ou que achemos que alguém deva ser atacado.

 

Para começar este assunto tão delicado, vamos relembrar de algumas zoeiras que os fãs faziam nas comunidades de Tomb Raider do Orkut. Veja esse meme, por exemplo:



Engraçado, não? Se você não entendeu, é uma brincadeira com o fato de Lara não mudar sua expressão facial nos jogos antigos, por falta de tecnologia. Essa piada foi feita por um fã da Lara no passado, num momento bastante descontraído. Estávamos comentando que gostávamos tanto de Tomb Raider, que não nos importávamos com as limitações tecnológicas. Amávamos cada detalhe. Na época, rimos do fato de que a Lara mantinha essa expressão “neutra” até mesmo quando estava morrendo afogada, o que transformava a morte numa cena um pouco engraçada. 


Lara está morrendo afogada (ou cortada por uma lâmina gigante, você escolhe), mas sua expressão é de leve curiosidade (hahahahahahaha).
Créditos da imagem: Perusing Pixels.


Agora pule para o ano de 2015, caro leitor. Já no Facebook, um membro de um grupo de Tomb Raider compartilhou, em um momento de humor, uma imagem parecida com a supracitada, rindo do fato de que a Lara não mudava sua expressão facial nos primeiros jogos da franquia. Mas dessa vez ninguém achou graça, e alguns "fãs dos clássicos" se revoltaram porque pensaram que era um ataque aos seus jogos preferidos. Ora, o que houve dessa vez? Perdemos a capacidade de fazer humor?

Perceba o que mudou de lá para cá: Piadas internas só funcionam quando você tem certeza de que o seu colega de fandom respeita o jogo que você gosta. Se o fandom está dividido entre "clássicos" e "reboot", é muito fácil julgar as piadas dentro de um contexto de polarização, e assumir que seja um ataque. Em outras palavras, se você faz uma piada com a “Lara quadradinha”, seu colega pode pensar que você é “fã do reboot” e “hater dos clássicos”. A recíproca é verdadeira: piadas com a Lara rebootada pode fazer você se tornar um hater do reboot. Você que lute.


Para piorar, essa realidade não se aplica apenas a piadas, mas a críticas direcionadas aos jogos. Graças à polarização clássicos versus reboot, criticar um jogo por qualquer motivo também se tornou sinônimo de ataque para uma boa parte de fãs, que quase sempre revidam. É bom você gostar de tudo o que há no jogo. Uma única crítica e você pode alfinetar profundamente um ou outro grupo de fãs. Pise em ovos.


Lara andando pelo fandom, tomando muito cuidado para não ofender ninguém.

Não é novidade que toda essa polarização começou no reboot de 2013, e se intensificou nos jogos seguintes. No entanto, o mais importante não é o momento, mas os fatores causadores dessa briga. Compreendê-los pode fazer com que cheguemos a um consenso e façamos a necessária autocrítica. Acompanhe esse texto sobre reflexões da polarização dos fãs de Tomb Raider.




Empresas e a sexualização de Lara Croft


Para contextualizar as brigas do fandom, precisamos falar primeiro sobre as empresas que produziram Tomb Raider ao longo das épocas, e como suas ações constituíram fatores de intriga entre os jogadores. Vamos falar sobre a sexualização de Lara Croft.

 

Em 1996, Lara Croft foi originalmente criada pela Core Design, que produziu os seis primeiros jogos da franquia. A outra empresa que estava envolvida com Tomb Raider desde o início foi a Eidos Interactive, que não produzia os jogos, mas era a proprietária dos direitos autorais da personagem (maldito capitalismo hahaha). Ela também era responsável por fazer a divulgação da franquia nas mídias.

 

Pois bem, essa era a maneira com que a Eidos Interactive divulgava a Lara Croft:


O jogo era de ação e aventura, mas era divulgado desse jeito...

A Eidos Interactive sexualizava Lara Croft. Sexualizar significa: “atribuir conotação sexual a; dar um aspecto, aparência, natureza ou caráter sexual a algo ou alguém”. Dentro dessa definição, é inegável que a personagem foi bastante sexualizada. As imagens oficiais de divulgação comumente apelavam para uso de roupas íntimas, nudez implícita como também poses bastante sugestivas. A maneira com que a personagem era exposta deu a ela a fama de sex symbol, e, a partir daí, Lara era estampada em capas de revistas com poses sensuais, e comumente aparecia em outras mídias (como propagandas e até clipes de música) também com apelo sexual. Lara era apenas uma arqueóloga de um jogo de ação e aventura, mas era vendida como uma garota sexual, certamente para atrair o público masculino a comprar os jogos.

Capa de uma edição da revista PlayStation, de 1999.

Veja essa outra cena, que faz parte de uma turnê da banda U2 (vídeo aqui):

A Lara das campanhas de marketing tinha trejeitos tão sexuais, que chegava a ser ridículo. E tudo era permitido pelo Eidos Interactive.


Croft também já ganhou uma imagem oficial juntamente com o personagem Duke Nukem, reproduzindo a capa de um álbum da cantora Janet Jackson:



O ápice das polêmicas sexuais de Lara Croft aconteceu em 1999, quando a modelo oficial de Lara Croft da época, Nell McAndrew, resolveu posar na revista Playboy usando o nome da personagem. Esse caso específico não foi permitido pela Eidos, tanto que, na época, a empresa solicitou o recolhimento das revistas (Fonte). Mas, ora, foram eles que construíram a imagem de sex symbol de Lara. De certa forma, a responsabilidade também era deles.



O apelo sexual que a Eidos introduziu na personagem tinha realmente saído do controle. No início dos anos 2000, surgiu até mesmo um mod que prometia deixar a Lara totalmente nua. Não foi um mod oficialmente criado pela Eidos, mas ele existia. Afinal, se nem a empresa respeitava a personagem, quem vai respeitar? Nessa época, as revistas de jogos faziam sucesso, e uma delas até apresentou um tutorial para fazer isso:


"Você vai baixar um plugin que transforma Tomb Raider em Nude Raider, se é que vocês me entendem".

No entanto, quem produzia os jogos não era a Eidos, era a Core Design, e quem comprou Tomb Raider esperando ver a Lara de toalha sensualizando com o dedinho na boca pode ter se decepcionado. Dentro do jogo, definitivamente, seu comportamento não tinha nada de sexual. Era só uma mulher fictícia num jogo de videogame fazendo umas estripulias impossíveis, matando uns dinossauros, pegando uns artefatos mágicos e portando... dois seios gigantes e surreais. A Core Design não sexualizava a personagem, mas objetificava seu corpo:


Cena de uma FMV de Tomb Raider 2 (1997). Lara desmaiou após ter sido arremessada por uma explosão.

Convenhamos que personagens fictícios não são obrigados a terem proporções corporais realistas. Corpos “deformados” como os heróis de Os Incríveis fazem parte de uma autêntica composição de arte, caracterizada pelo humor. Se uma personagem fictícia tem uma cintura mais fina que o normal, isso não é exatamente um problema (às vezes, a intenção não é ser realista mesmo). Mas, convenhamos também que não dá para chamar o corpo de Lara de mera liberdade artística sem assumir que houve uma intenção de “forçá-lo” para objetificá-lo. Foi apelativo, sem dúvidas. Agora veja que objetificar é diferente de sexualizar. Embora seu corpo exagerado estivesse lá, quase que implorando para ser desejado, Lara não tinha nenhum comportamento sexual nos jogos.


Muito se discute entre fãs sobre a sexualização de Lara. De fato, a Eidos promovia a franquia em torno do corpo da personagem, mas esse apelo sexual era restrito às campanhas de marketing. Nos jogos, Lara era praticamente outra.


Curiosidade: Costuma-se atribuir o exagero do corpo de Lara principalmente aos tamanho dos seus seios. Mas no modelo 3D da personagem in-game, sua cintura cumpre um papel mais importante. Veja a Lara em Tomb Raider 2 (1997) e observe a mesma imagem editada no Photoshop para ter uma cintura mais realista (os seios e o quadril não foram alterados):


No modelo original, o tamanho dos seios da Lara se contrastam com sua cintura minúscula. Mas se "corrigirmos" a cintura, observaremos uma mulher magra, atlética e com seios grandes: um corpo no estilo "Pâmela Anderson", invejável para o padrão de beleza de sua época.

Sexualizada ou objetificada?

Em resumo, pode-se constatar o seguinte: Lara Croft foi sexualizada na divulgação da franquia, e foi objetificada nos jogos. A equipe de programadores de Tomb Raider era formada majoritariamente por homens, que construíram o modelo 3D da personagem. Mas quem criou sua personalidade e decidiu seu comportamento, trejeitos, e até sua biografia, foi uma mulher chamada Vicky Arnold (Fonte). Dessa maneira, a Lara dos jogos é objetificada, porque seu corpo é construído com proporções apelativas, mas não é sexualizada, porque em nenhum momento ela assume um comportamento sexual dentro dos jogos (diferentemente da divulgação feita pela Eidos Interactive). 


Em outras palavras, a essência da personagem foi construída por uma mulher, e os seus seios enormes eram um detalhe visual irrelevante para a história. Nos jogos, ninguém olha para os seios da Lara, ninguém fala deles, eles não são usados para nada, são apenas uma característica da personagem. Lara não usa de sensualidade para conseguir nada em momento algum. Não é como, por exemplo, a Mulher Gato, que seduzia seus inimigos para obter vantagem. As vantagens da Lara Croft eram sua audácia, inteligência e até mesmo sua força física, e isso fica evidente nas suas aventuras. Apesar de objetificar o corpo de Lara Croft, a equipe da Core Design conseguiu trazer uma personagem bastante consistente, muito graças à Vicky Arnold.


Além do corpo surreal, existem outros aspectos que caracterizam a objetificação da personagem. No entanto, devemos nos lembrar que as intenções machistas começam com os produtores, mas terminam com VOCÊ. Por exemplo: em Tomb Raider 3 (1998), Lara Croft ganhou movimentos novos, entre eles, a habilidade de se esgueirar por buracos estreitos, o que tornou a exploração do ambiente mais interessante. Lara passava por eles engatinhando: 



Essa é uma situação polêmica, porque o termo “engatinhando” pode ser considerado um eufemismo para uma posição do Kamasutra conhecida popularmente como “ficar de quatro”. A objetificação da personagem começa com os produtores, que provavelmente escolheram essa posição justamente para focar nos glúteos quadrados de Lara, mas esses mesmos produtores precisam de você para concluir seu objetivo machista. No jogo, Lara não engatinha para se exibir para alguém. Ela está sozinha, se esgueirando meramente para coletar um item qualquer, sem nenhum objetivo sexual. Está objetificada, mas não há nenhum propósito sexual na cena. Quem pensa no Kamasutra é VOCÊ. Mas não o culpo, afinal, mostraram ela de topless na divulgação do jogo, então você sabia muito bem o que esperar.


O mesmo se pode dizer das roupas da personagem. Lara possui uma variedade de trajes em todas as suas aventuras. O principal deles é o famoso e icônico shortinho:


Cena de Tomb Raider 3 (1998)


Ora, o que você pensa quando vê uma personagem de shorts? Ela pode usar isso, ou está proibida? Lembre-se de que todas as roupas que Lara usa nos jogos são roupas “civis”. Roupas que qualquer mulher poderia usar para andar em público normalmente. Diferentemente da Lara das campanhas, nos jogos clássicos ela não aparecia de roupa íntima, tampouco nua.

 

Você provavelmente poderia pensar: “Estão mostrando as coxas (ou a barriga) dela para chamar a atenção e vender mais, e isso certamente é uma forma de objetificação”. Está certo. Mas e se depois você descobrisse que a pessoa por trás dos shorts de Lara era uma mulher que adorava usar shorts? Você mudaria de ideia? Vamos decidir se os shorts são um problema em função da identidade de gênero e da motivação de quem os escolheu? Precisamos, aqui, definir quais roupas são permitidas para uma mulher fictícia, e com qual frequência é aceitável que ela as use. É permitido que ela mostre suas coxas? Ops, que pergunta machista!



Você pode argumentar que Lara usava shorts frequentemente porque os produtores queriam objetificá-la. Afinal, venderam-na como uma sex symbol. Ou voce pode dizer que Lara é apenas uma arqueóloga com um guarda-roupas criativo. Sendo assim, fora do contexto do marketing sexual da personagem, sua percepção sobre Lara dirá mais respeito sobre como VOCÊ enxerga uma mulher que, vez ou outra, está de shorts. Por isso, você encontra por aí opiniões sobre a Lara Croft clássica, que vão desde “ela é material de nerd punheteiro” até “ela representa uma mulher que gosta de se sentir sexy, e isso não é um problema”. Você vê pessoas se referindo a Tomb Raider como “o jogo daquela mulher peituda e gostosa”, e vê pessoas jogando “o jogo da Lara Croft, uma mulher inteligente, sexy, forte e independente”. Sexy não é sinônimo de sexualizada.


De fato, não é problema uma mulher gostar de se sentir sexy, seja ela fictícia ou real. Sejamos realistas: a Lara clássica está ali objetificada. Mas isso não acontece por causa de um mero par de shorts, não é mesmo?


A câmera pervertida


Na tentativa de encontrar motivos para dizer que Lara era sexualizada dentro dos jogos, é muito comum que os jogadores apontem para a existência de uma “câmera pervertida”, que mira na bunda da Lara para que você aprecie seus dotes. Você pode presumir isso olhando para a imagem abaixo. Por que diabos a câmera está apontada para cima?



Se você conhece um pouco sobre a franquia Tomb Raider, deve saber que o reboot de 2013 é bastante conhecido por ter “removido” a objetificação de Lara Croft. Mas verifique a seguinte cena do reboot:



Essa é uma das cenas mais emocionantes do jogo. Lara está escalando uma torre de rádio, e a câmera fica posicionada de uma maneira a ver o que a aventureira está vendo: o alto da torre, uma ponta de esperança para sair da ilha de Yamatai. Faz sentido pensar que posicionaram a câmera desse modo para evidenciar sua bunda realista? É objetificação ou cinematografia?

 

Aqui, caímos num empasse: Há um jogo, e nesse jogo há uma mulher, que tem um corpo. Você vê esse corpo, é óbvio. Só isso não caracteriza objetificação. Ela está lá para ser vista mesmo, e está subindo uma escada, não há nada de sexual nisso. Aliás, é conveniente uma câmera nessa posição, porque você precisa saber se há uma armadilha logo a frente. Tomb Raider é um jogo de puzzles e armadilhas. Agora observe de novo a imagem do jogo clássico:



Há algo que você pode não saber: nesse jogo, quando a Lara está subindo a escada, a câmera aponta para cima. Quando está descendo, para baixo. Veja só:


Lara descendo as escadas. É comum os jogadores descerem dessa maneira, segurando apenas com as mãos e caindo aos poucos. É mais rápido.


O jogador sempre precisa ver para onde está indo. Isso é uma objetificação do corpo da Lara? Ok, parece que não...


Alguns insistem que a Lara antiga é objetificada por causa da câmera, que "focava em seus dotes". Mas, caro leitor, a câmera dos jogos antigos era fixa nas costas de Lara em situações normais. Você não tinha muita liberdade. Vez ou outra ela travava um pouco, ou se aproximava demais das costas, do bíceps ou do busto. Acontecia principalmente quando Lara estava em um lugar muito apertado. Bem, você podia aproveitar isso para, com um pouco de jeito, posicionar o corpo dela estrategicamente e ter uma visão focada nos seios ou na bunda. Não funcionava se o lugar não fosse apertado o suficiente, e ás vezes a câmera até entrava na cabeça de Lara. Mas não parecia haver uma programação pervertida.


Aliás, é mais fácil você conseguir apreciar os dotes da arqueóloga nos jogos atuais, com uma câmera livre.


Você está vendo a bunda de Lara com detalhes. Significa que ela está objetificada? Não. Significa que é um jogo de terceira pessoa com câmera livre.

É diferente, por exemplo, de Resident Evil 4, quando a personagem Ashley está subindo uma escada usando uma minissaia, e no momento em que o jogador posiciona a câmera para ver sua calcinha, ela tenta tampar com a mão e o chama de pervertido. É claro que a minissaia foi toda pensada para criar essa cena, e o jogador pode “tentar” ver sua calcinha quantas vezes quiser durante o jogo. Nesse caso, há pelo menos uma justificativa para problematizar a cena. Não é como: "Vocês estão olhando para a bunda dela, podem parar". 


A grande lição de tudo isso é a seguinte: Lara Croft foi objetificada nos jogos. E você pode entender isso e falar sobre isso. Mas quando uma pessoa problematiza uma mulher subindo uma escada, parece uma militância vazia. Essa pessoa provavelmente quer falar sobre representatividade feminina, mas não entende muito sobre jogos, ou sobre Tomb Raider. Lara Croft foi objetificada, mas não quer dizer que tudo que está no jogo é sexualização e objetificação. Se você quer jogar sem ver o corpo da personagem, precisa recorrer aos jogos de primeira pessoa.


A militância vazia


Vamos considerar outro exemplo: em 2003, foi lançado Tomb Raider the angel of darkness, o primeiro Tomb Raider da sexta geração dos videogames. A evolução gráfica foi tão incrível para a época, que era surpreendente só o fato de a Lara ter dedos (antes disso, suas mãos eram, literalmente, dois paralelepípedos). Outras evoluções gráficas foram a inclusão de movimentos na sua franja, nas suas sobrancelhas, na sua boca, nos seus seios... ESPERA AÍ, NOS SEIOS?


Cena de Tomb Raider the Angel of Darkness (2003), onde é possível notar o movimento dos seios da Lara. Uma curiosidade é que nesse jogo a cintura da Lara adquiriu proporções mais realistas que nos jogos anteriores.


Sim, caro leitor. Houve quem problematizou o balançar dos seios de Lara Croft, que não era exagerado considerando os movimentos que ela fazia (pulos, habilidades acrobáticas, etc). Pois bem, remover esses movimentos pode significar a infelicidade do nerd que fica olhando para eles, mas, acima de tudo, significa uma redução de qualidade gráfica: na vida real, seios balançam quando uma mulher pula entre dois precipícios. Nos jogos, esperamos que isso aconteça. E até hoje os seios de Lara balançam. Na verdade, tudo nela balança, graças à evolução gráfica. Nos jogos atuais, até mesmo as flechas balançam dentro de sua aljava.


Por isso mesmo, precisamos separar o que é objetificação e o que é... nada. Nem tudo o que está no jogo é um problema. E precisamos saber em que momento a intenção dos produtores é maldosa, em que momento é “sugestiva”, e em que momento a maldade está unicamente na cabeça do jogador.


Curiosidade: na verdade, os seios de Lara balançavam desde o primeiro Tomb Raider, mas não durante as fases. Isso ocorria nas chamadas "FMV's" (Full Motion Video), que são pequenas cinemáticas cujos gráficos eram bastante superiores aos do jogo em si. Na época a franquia se destacava bastante pela qualidade dessas cenas.


Cena de uma FMV de Tomb Raider (1996). As FMV's não eram tão frequentes, mas complementavam a história do jogo.

Mais militância vazia

Querem saber de outro exemplo? Há quem diga que a Lara Croft “geme” nos jogos antigos.

Apesar de reconhecer a diferença entre "sexy" e "sexualizada", a autora lamentavelmente acha que a Lara clássica "só geme e toda hora empina a bunda". Será que ela já jogou Tomb Raider?

Ora, os jogos colocam Lara em situações difíceis, levantando o peso do próprio corpo, carregando pedras enormes, correndo de inimigos perigosos, levando mordidas de ursos, arfando por causa de seus esforços físicos, por vezes ofegando após um susto. É fato que algumas personagens femininas reproduzem gemidos bastante sugestivos durante os gameplays (jogos japoneses, estou falando com vocês), mas não é o caso de Lara Croft. Não há nada de sexual nos seus rufares. Sério. Mas a cabeça maldosa do militante os enxerga como gemido sexual. Poxa, todo personagem arqueja, homens ou mulheres, tanto na ficção quanto na vida real. O fato de Lara ter sido objetificada não significa que você tem que procurar pelo em ovo. Foram dados vários exemplos reais de objetificação da personagem, você não precisa inventar outros.


Curiosidade: Ironicamente, o único jogo em que possui gemidos sugestivos é o reboot de 2013. É preciso ter coragem para jogar as cenas iniciais do jogo com a TV em volume alto. Parece mesmo um filme pornô.


Descansa, militante...


Para entender quem é a Lara Croft clássica, temos que avaliar a personagem como um todo, e então descobriremos o que realmente a define: ela é totalmente independente, debochada, impaciente e sagaz. Ela também toma suas próprias decisões. Não é uma "heroína genérica”, é uma criminosa. Ela tem uma personalidade única, não existe para agradar ao estereótipo da mocinha meiga. Mas ela também é amável com seus amigos e faz de tudo para protegê-los. Ela gosta de se sentir sexy, mas não usa sensualidade para conseguir nada. Lamentavelmente, os produtores a objetificaram nos jogos e a sexualizaram nas campanhas de marketing, mas Lara Croft ainda era uma mulher à frente do seu tempo. A essência da personagem não estava associada à objetificação que ela sofreu. E quando alguém a resume como “aquela sexualizada”, podemos entender que essa pessoa não conhece a personagem, ou porque ela não tem interesse no jogo, ou porque ela acha que nenhuma mulher da ficção deveria ter a audácia de ser sexy. E isso parece mais machista que feminista. 


Lara em uma FMV no jogo Tomb Raider The Last Revelation. 

Trilogia LAU

Em 2003, a Eidos Interactive tirou a franquia das mãos da Core Design e entregou-a para outra empresa: a Crystal Dynamics, que produziu a trilogia Legend, Anniversary e Underworld. O que se pode dizer sobre essa trilogia, em termos da objetificação da personagem, é que a nova empresa incluiu biquínis jogáveis para Lara em Tomb Raider Legend (2006). Mas foi aceitável, pois Lara somente podia usá-los em sua casa, onde há uma uma piscina enorme e perfeita. É a roupa de banho dela, ora, bolas. Há um contexto óbvio.

Lara em seu quarto usando biquíni. Um mergulho agora cairia bem.

Alguns fãs atribuem a trilogia LAU como um início da redução da objetificação de Lara:

Sexualização e objetificação são comumente tratadas como sinônimas pelos fãs.


No entanto, essa opinião é questionável. Apesar de o marketing da franquia não ser tão apelativo quanto na década de 90, Tomb Raider Legend é o jogo que possui as roupas mais "peladas" de Lara, além de ser o segundo jogo da franquia com a maior média de exposição do corpo da personagem (verifique isso na análise que fizemos aqui), perdendo apenas para o Tomb Raider The Last Revelation.


Mas o maior absurdo acontece em Tomb Raider Underworld (2008), onde Lara pode usar seus biquínis caríssimos e estilosos durante suas aventuras, sem qualquer explicação lógica (basta que você tenha um Xbox e dinheiro para comprar as DLC’s). Pela primeira vez, tivemos roupas de banho nos gameplays. A responsabilidade é toda da Crystal Dynamics.


É... Não tem sentido nenhum...


Sabemos que a Core Design já tinha um histórico de objetificar a personagem, mas não chegaram ao ponto de colocar a Lara semi-nua. Aliás, as tentativas de fazer isso sempre vinham de meios não-oficiais, como jogadores espertinhos que sabiam fazer mods. Mas na trilogia da Crystal Dynamics, você não precisa de mods. É tudo por conta da casa.


Independentemente disso, uma coisa é certa: dentro dos jogos, Lara continuou sendo aquela mulher que resolve seus problemas unicamente com sua destreza, inteligência e força. Alternava seus trajes entre calças, jaquetas, tops e shortinhos (ou biquínis, se você os desbloqueasse), mas não expressava nenhum comportamento sexual. Sexy, por vezes objetificada, mas nunca sexualizada.


Arte conceitual de Tomb Raider Legend (2006)

A Era Reboot

Posteriormente, em 2009, a Eidos Interactive tornou-se oficialmente parte da Square Enix, e a Crystal Dynamics continuou desenvolvendo os jogos Tomb Raider. A empresa então produziu outra trilogia, um reboot completo. O primeiro jogo dessa trilogia foi lançado em 2013, e apresentou uma roupagem diferente para Lara juntamente uma grande mudança de gameplay. A Crystal também começou a dar declarações que não agradaram muito os fãs da personagem, além de distanciar o jogo (e a Lara) de tudo aquilo que caracterizava a franquia, como os puzzles, as pistolas duplas, as próprias tumbas (pasme!), a exploração, a personalidade da Lara, a atmosfera do jogo, etc. Darrell Gallagher, chefe da Crystal Dynamics, deu a famosa declaração: “Esqueça tudo o que você sabe sobre Tomb Raider” (Fonte). Durante a divulgação do jogo, em premieres de lançamento e nos veículos de comunicação, declarações como essa foram comuns. Se você considerar que se trata de um reboot, isso pode até passar batido. "É só um modo de dizer", você poderia pensar. Afinal, é um reboot, um reinício.



Mas seria bom se fosse apenas isso... Acontece que essas declarações passaram a fazer bastante sentido quando os fãs perceberam que não havia quase nada de “Tomb Raider” no jogo de 2013, exceto pelo nome do jogo e pelo fato de a protagonista ser uma mulher chamada Lara Croft. Aí começou a polarização: a franquia literalmente se dividiu em duas. Naturalmente, muitos gostaram do novo estilo: fãs novos, e uma parte dos fãs antigos. Mas muitos não gostaram. Há quem ame as pistolas duplas, e há quem prefira o arco-e-flecha. Aqui, precisamos entender o que é fato e o que é opinião. Dizer que o clássico é melhor que o reboot, ou vice-versa, é opinião. Dizer que a essência de Tomb Raider se perdeu é fato. O reboot é um excelente jogo, mas não tem muito de Tomb Raider nele. Esse foi o início da polarização do fandom: a exigência de que esqueçamos tudo sobre uma franquia consolidada no mercado há 17 anos, com uma fã-base forte e gigantesca.



Há também o fato de que alguns fãs aceitaram o reboot com a esperança de que, nessa nova história de origem, a protagonista se tornasse a Lara Croft que todos conheciam. Essa era a propaganda, não? Mas isso também não aconteceu. Era pra esquecer tudo mesmo. A trilogia reboot narra a origem de uma personagem legal, mas que não parece ser aquela Lara Croft. E enquanto outras empresas, como a Capcom, ouviam os fãs (ainda que minimamente), não se podia dizer o mesmo da Crystal Dynamics. A filosofia da empresa parecia ser ignorar completamente os fãs e matar a Lara antiga com tudo o que ela já significou. Quase como uma birra pessoal.


Dentro desse cenário dividido, alguns jogadores gostam mais da Lara antiga. Outros, da nova. É a opinião de cada um, certo? Não para a Crystal Dynamics. Para a empresa, a Lara Croft clássica estava simplesmente... errada. E agora, fantasticamente, está certa.


Polêmicas...


Em 2015, Camilla Luddington, atriz e dubladora oficial de Lara Croft, se manifestou durante a campanha de marketing de Rise of the Tomb Raider. Camilla afirmou que não fazia sentido uma heroína escalar montanhas de shortinho, referindo-se à Lara clássica (Fonte). É claro que a atriz estava seguindo a filosofia da Crystal Dynamics, sugerindo que matar a essência de Tomb Raider faz parte de uma causa maior: o feminismo. Evidentemente, isso despertou discussões entre os fãs.


Camilla Luddington, que dublou a Lara no reboot, como também fez a captura de movimentos da personagem.

Mas também não há nenhum problema no argumento de Camilla, é a opinião dela. Aliás, se você pesquisar por “mulher escala montanha” no Google Imagens, vai encontrar um monte de shortinhos lá (touché!). O leitor poderia argumentar que Camilla estava se referindo à sexualização da mulher nos videogames. E esse é um ótimo ponto: não as queremos sexualizadas. Mas sexualizar não significa usar um shorts. O problema da agenda feminista não se resolve meramente colocando um par de calças na Lara. Ou melhor dizendo: o que fazia a Lara Croft sexualizada (e objetificada) não eram seus shorts.


Para entender essa questão de uma vez por todas, perceba que a Lara rebootada não é uma versão "não-objetificada" da Lara clássica. É apenas outra personagem. Você pode até gostar mais dessa versão, mas ela não tem a essência da Lara Croft antiga. Por isso, dentro do fandom, a declaração de Camilla não soou como "ainda bem que a Lara não está mais objetificada", porque há duas Laras, que são diferentes em quase tudo. E não há nada de errado com a Lara clássica em si, porque a objetificação de seu corpo era algo desassociado de sua essência. Camilla soou mais como "shorts são inadequados, minha Lara está certa, a outra estava errada". Aliás, não era isso que a Crystal Dynamics sugeria?

 

Era muito comum os fãs discutirem por causa das declarações da Crystal Dynamics:



Camilla também disse que sua Lara era “mais prática, mais real” que a Lara clássica. Agora é necessário colocar as suas declarações dentro do contexto de polarização do fandom, trazendo à tona toda a ironia da situação: no início deste texto, foi dito que as críticas aos jogos acabaram muitas vezes sendo vistas erroneamente como “atitude de hater”. Mas, se fosse assim, chegaríamos à conclusão que as declarações de Camilla não foram meras constatações, mas foram práticas de hater. “Não faz sentido”, ela disse. Ora, qual a diferença entre a Camilla e um fã que afirma que não faz sentido matar um exército com um arco-e-flecha de madeira? O tipo de argumento é o mesmo, ambos os elementos dos jogos não fazem sentido (aliás, o shortinho tem o Google Imagens em sua defesa). Ou os dois são haters, ou nenhum é.



A verdade é que nenhum dos dois é hater. No entanto, embora ambos os argumentos sejam válidos, há uma diferença crucial entre a Camilla e o reles fã: a Camilla trabalha na empresa, ela dubla a própria Lara Croft. Pense em uma empresa que vende qualquer produto, caro leitor, a primeira que passar na sua cabeça. Imagine que essa empresa esteja vendendo um produto novo com o seguinte slogan: “Este produto agora faz sentido, o anterior não fazia”. Soa estranho, não? Se essa declaração tivesse vindo de um mero cliente, estaria tudo bem, é só um cliente dando uma opinião. Mas se vier de um funcionário da própria empresa, poderia até ser julgado como falta de ética. Voltando ao exemplo da declaração de Camilla, nenhuma das duas Laras faz sentido (é só um jogo de videogame), e é esperado que os fãs façam esses apontamentos e manifestem suas opiniões. Mas não é esperado que a empresa reduza uma Lara para promover a outra. Além de soar como “cuspir no prato que comeu”, sem dúvidas acaba tornando causa de desavença entre fãs, como aconteceu nos últimos anos.

Para colocar mais lenha na fogueira, em 2018, o próprio diretor de Shadow of the Tomb Raider, Dan Bisson, sugeriu que os jogos clássicos da franquia eram jogos que se tratavam de pistolas e biquíni. Sua declaração foi exatamente a seguinte (Fonte):

“No. I don’t want that. For us this is her defining moment. We’re not going to put her in shorts with double-pistols, wearing a bikini; that’s not what this is.”

Em tradução livre: "Não. Eu não quero isso [referindo-se às pistolas duplas]. Para nós, esse é o momento definitivo dela [???]. Não vamos colocá-la de shorts com pistolas duplas, usando um biquíni. Não é disso que se trata."


O detalhe é que ninguém perguntou sobre biquínis. A entrevista era sobre a volta das icônicas pistolas duplas, mas o diretor deixou escapar o que ele pensa sobre a Lara Croft clássica. Aliás, nós sabemos que muitos jogadores fazem comentários péssimos sobre a personagem. No entanto, é bem diferente quando esse tipo de comportamento é legitimizado por nada menos que O DIRETOR DO JOGO. Isso diz muito sobre como a empresa lida com a sua própria franquia.


Ironicamente, Bisson acompanha a produção de Tomb Raider desde o primeiro jogo do reboot, produzido pela Crystal Dynamics, que foi justamente a empresa responsável por introduzir os biquínis na franquia em Tomb Raider Legend. Todos os biquínis dos jogos são por conta deles.



Observação: Shadow of the Tomb Raider, último jogo da trilogia reboot, começou a ser produzido pela Crystal Dynamics, mas no meio da produção, outra empresa assumiu o desenvolvimento: a Eidos-Montrèal (antiga Eidos Interactive). Dan Bisson foi o diretor do jogo desde o início. Na época, a Crystal Dynamics saiu porque foi chamada pela Square Enix para produzir o jogo dos Vingadores.

O sentimento de que a empresa não respeita a personagem de sua própria franquia repercutiu negativamente entre os fãs. Enquanto a Lara Croft clássica se mostrava uma mulher forte, determinada, sexy e sagaz, a empresa aproveita oportunidades para sugerir que era nada mais que “pistolas e biquíni” (qual o problema com as pistolas?), tratando uma como “a certa” e outra como “a errada”. Machistas.


E houve muitas discussões sobre isso na internet:



Tradução: Eles tentaram ridicularizar a Lara clássica e basicamente esconder sua existência por meio de declarações como "Não daremos a ela pistolas duplas e não colocaremos ela de shorts enquanto usa um biquíni". Isso não faz sentido.


Tradução: @CrystalDynamics ninguém está perguntando sobre o retorno dos biquínis (que inclusive estão disponíveis apenas nos seus jogos). Vocês obviamente souberam quão icônicas foram as pistolas duplas, dando seu fim em 2013? Ensinem sua Lara!

Qual o problema com os shorts?


Abrindo um leque para falar de outras franquias, trago-lhes um trecho da Revista Super Interessante sobre o jogo Horizon Zero Dawn (Fonte):



Aloy é uma personagem incrível dentro de seu universo, isso é fato. Mas observe o quanto há de “senso comum” em uma parte da declaração da Revista SI. O fato de uma personagem usar roupas curtas, ou gostar de se sentir sexy, não a torna inadequada, e não necessariamente tem relação com sua força. Aloy é forte usando seus trajes conservadores, e Lara Croft também é “forte unicamente por ser forte”, usando suas roupas curtas. Às vezes Lara usava shorts e às vezes calças, mas isso pouco importava, ela era sexy como gostava de ser, mas a maneira com a qual ela vencia seus desafios era sempre usando sua inteligência e coragem, “e o progresso dela na jornada é a maior prova disso”. Não caia na armadilha de resumir uma personagem a suas roupas. Também não confunda sexy com sexualizada. Muitas mulheres amam se sentir sexys na vida real. Não há sentido em simplesmente proibir essa característica no mundo dos videogames. 



O Contato entre Duas Gerações


A franquia Tomb Raider adquiriu muitos novos jogadores em 2013, devido principalmente ao novo estilo de jogo focado na ação. Isso não é problema, afinal, todos querem que o fandom cresça. No entanto, as mudanças na franquia foram drásticas o suficiente para atrair jogadores que não gostavam de jogos de exploração e puzzles, e que não se identificavam com a Lara Croft como todos a conheciam. Essas características também não são um problema em si, afinal, gosto não se discute.


No entanto, participar de uma comunidade sobre Tomb Raider sem gostar de Tomb Raider pode resultar em problemas. É certo que, mesmo antes do reboot, nem todos os fãs gostavam da franquia toda, mas o pós-reboot intensificou este cenário de maneira intensa e inédita. O fato de que tais jogadores sequer conheciam a franquia da qual criticavam tornou os diálogos entre fãs cansativos e de péssima qualidade.


A época em que os jogos eram "ruins" também é conhecida como "A Era de Ouro de Tomb Raider", quando Lara Croft mais se destacava na indústria dos games. A própria Sony se beneficiou com Tomb Raider, pois a franquia foi uma das responsáveis pela ascensão do PlayStation no Mercado de Consoles.


E se existe um extremo de opinião, existe também o outro: jogadores que detestaram os games atuais, que teceram seus desabafos (nem sempre educados) porque não reconheciam mais nem a personagem e nem o estilo do jogo pelo qual eram apaixonados. Como na política, na religião e nos campos de futebol, o contato entre dois extremos, em vez de levar ao necessário diálogo, levou a mais brigas, revoltas e ao sentimento de "estamos certos e eles errados". A existência desses subgrupos de fãs dentro do fandom acabou, aos poucos, eximindo a possibilidade de fazer as tais “piadas internas” ou mesmo criticar um determinado jogo, reduzindo esse ato ao conceito de hater. A linha entre o hater e a crítica nunca foi tão confusa. Acrescente isso às declarações que a Crystal Dynamics fazia, tentando apagar a Lara Croft clássica, e voilà: a Guerra está formada.


A competição do realismo


Há muitas facetas na discussão clássicos versus reboot: uma delas é a do realismo dos jogos. É fato que boa parte dos jogadores querem um jogo, até certo ponto, realista, imersivo e coerente. Isso não é um problema. O grande problema do fandom é a existência de uma competição para decidir quais jogos são mais realistas, e atribuir, em função disso, níveis de qualidade. É sempre um “nós contra eles”. Por um lado, os novos fãs afirmam que não há sentido em dar um pulo de dois metros de altura, ou em escolher um shortinho para uma aventura perigosa. Por outro, fãs antigos retribuem com suas acusações contra as flechas de galhos de árvore que Lara usa para matar exércitos armados com metralhadora, ou mesmo os objetos pesados que ela pendura no corpo para fazer parkour. Ora, nada dessas coisas fazem sentido, mas quem é que não sabe disso? Tomb Raider nunca teve a proposta de ser uma simulação da vida real. Quem expõe a falta de realismo de um jogo não está contando nenhuma novidade. Mas a discussão está lá, firme e forte. A polarização pode até fazer os fãs defenderem seu jogo preferido a todo custo, mesmo que o argumento não faça nenhum sentido. Veja esse exemplo:



Esse comentário surgiu no contexto de uma discussão sobre qual arma fazia mais “sentido” para uma expedição na selva: um arco-e-flecha (de madeira), ou duas pistolas. Para tentar justificar seu gosto pessoal, o autor do comentário sugeriu o absurdo de que ambas as armas tinham o mesmo poder de fogo. Mas, poxa, percebe como essa discussão sobre realismo fugiu do controle? Os fãs estão tentando inventar desculpas para justificar seus gostos pessoais. Mas isso não faz sentido, porque o jogo nunca foi realista a esse ponto Assim como a Lara de shortinho: nem sempre é a melhor escolha, mas e daí? Muitos jogadores amam, acham que cai bem. Não há por que inventar explicações mirabolantes. A discussão pode existir, mas quando ela acontece dentro de um contexto de polarização, os argumentos passam a não ser nem honestos. Seria melhor apenas dizer: “arco-e-flecha é divertido, eu amo”.



Agora lembre-se de onde veio a cultura da competição de realismo: da Crystal Dynamics. Com toda a responsabilidade que ela adquiriu ao se tornar representante da personagem, escolheu colocar uma Lara acima da outra, e legitimar esse discurso de competição. Claro que, desde sempre, os fãs apontam para os elementos não-realistas dos jogos, caracterizando-os em “engraçados” ou “incômodos”. Mas pela primeira vez, a polarização criou um cenário no qual, para falar bem de um jogo, é preciso falar mal de outro. A grande ironia dessa história é que a Lara da Crystal está muito longe de ser realista. Em muitos pontos, mais longe ainda do que a Lara clássica. Mas realismo não é sinônimo de divertimento, nem de qualidade, e seria horrível jogar Tomb Raider sem todos aqueles exageros. Aliás, se gosta de exageros, jogue a trilogia reboot da Crystal. Irrealismo é o que não falta, felizmente. Tem a Lara caindo de precipícios e não morrendo, e tem ela escalando montanhas de armadura também (porque o shortinho não faz sentido).


Um avião está prestes a cair sobre a cabeça de Lara, mas ela consegue escapar se jogando num barranco, deslizando ladeira abaixo e se desviando de vários destroços, enquanto o avião é destroçado violentamente aos poucos, atrás dela. Essa cena é particularmente emocionante.


Equívocos dos fãs


A ideia de competição entre as duas Laras também pode fazer com que os fãs discutam por qualquer coisa:



Perceba que a autora do primeiro comentário se mostra animada com um possível retorno das pistolas duplas, armas icônicas de Lara. Mas rapidamente, e sem contexto nenhum, a discussão se tornou uma disputa sobre qual Tomb Raider é verdadeiro. Bem, depois de uma enorme discussão com dezenas de respostas, a autora abandonou o post, deixando um lamento:



Ora, todos nós podemos comparar as versões de Lara, ou mesmo apontar qual gostamos e qual não gostamos. No entanto, precisamos ser mais racionais na hora de avaliar as opiniões do fã alheio. Há quem goste de uma Lara e não goste da outra, e isso não é problema. Mas veja bem, se uma fã diz que sente falta das pistolas duplas, ela não está dizendo nada além de que... ela sente falta das pistolas duplas. Ela não está iniciando uma discussão sobre qual é a Lara de verdade.


Em resumo, você pode sim dizer coisas como: "Não gostei da Lara nesse jogo, achei ela chata", "detesto essa roupa", "Prefiro essa versão da Lara do que a outra" ou "Não gostei desse jogo". Diferentemente do que muitos fãs dizem por aí, comparar as Laras não é proibido. Você não é hater quando diz que gosta de uma porque ela tem uma característica que a outra não tem, ou quando faz uma piada sobre isso. Temos duas versões da Lara agora, paciência. Temos fãs que estão aí há décadas curtindo a personagem e fãs que chegaram há pouco tempo. Vamos ser amigos. A vida é isso, lidar com opiniões contrárias. Apenas seja educado.




Os fãs e a sexualização de Lara Croft


Talvez o assunto mais recorrente nas brigas entre fãs foi a sexualização de Lara Croft. Em 2013, a franquia sofreu um trilhão de modificações: redução dos puzzles, menos exploração e mais ação, alteração da personalidade de Lara, exclusão das pistolas duplas (principal marca da personagem), redução da variabilidade de cenários, inclusão de elementos de RPG, exclusão de ambientes aquáticos, etc. Juntamente com todas essas mudanças, sabemos também que a Lara deixou de ser objetificada. Ao comparar a diferença entre as épocas, as discussões sobre o jogo e a personagem se tornavam confusas, pois os fãs misturavam o assunto da objetificação com o restante das mudanças da franquia. Assim, se algum fã mencionava elementos dos jogos clássicos, ocorria de alguém invocar o feminismo sem nenhum contexto:


Oi?


Esse tipo de abordagem se tornou comum dentro do fandom. É fato que Lara Croft foi uma personagem sexualizada e objetificada no passado, mas, de todas as mudanças que a franquia sofreu no reboot de 2013, a retirada da objetificação foi UMA DELAS. Mas em um cenário polarizado, gostar da Lara clássica pode significar que você deseja a sexualização da personagem. E isso acontece por um motivo: a Crystal Dynamics, empresa que criou essa nova Lara, pegou carona no movimento feminista para justificar todas as mudanças da franquia. Se agora a Lara é séria e não sarcástica, se ela usa arco-e-flecha em vez de pistolas duplas (Dan Bisson problematizou as pistolas duplas, lembra?), e se o jogo tem muita ação e poucos puzzles, não reclame: a empresa está cumprindo a agenda feminista. É quase que uma questão moral. Isso não faz o menor sentido, mas surpreendentemente funcionou: muitos fãs que não conhecem a Lara clássica simplesmente veem a Lara atual como mais adequada em todos os aspectos. Desse modo, invocar a Lara clássica e as suas características ficou parecendo um retrocesso. A propaganda é a alma do negócio, caro leitor.


"...aquela Lara determinada e poderosa..."


Qual a primeira suposição a se fazer de um fã que quer "a Lara clássica de volta"? Imaginar que ele está ansioso por um par de seios surreais e uma bunda empinada? Ora, estamos falando de uma personagem cheia de camadas, e a primeira coisa que se faz é assumir que o colega de refere à objetificação de seu corpo?

 

É aí que as discussões do fandom se tornam confusas: o fato de alguém se identificar com a "essência" de uma personagem não tem necessariamente relação com a agenda feminista. Tomemos como exemplo a Arlequina, anti-heroína da DC. "Esquadrão Suicida" trouxe a atriz Margot Robbie com roupas demasiadamente curtas, e por vezes o ângulo da câmera mirava em partes sugestivas da atriz.



Mas no segundo filme (Aves de Rapina), a personagem adquiriu roupas mais aceitáveis, afinal, a própria Margot Robbie escolheu suas roupas, juntamente com a diretora do filme, Cathy Yan. Evidentemente, os trajes eram ainda coloridos e marcantes, para não perder a essência da personagem. A "câmera pervertida" também sumiu (obrigado, Cathy Yan), mas ainda era a mesma Arlequina, com sua personalidade única e seu porrete icônico. Os únicos que reclamaram foram os nerds punheteiros (mas quem liga pra opinião deles?).


Obra de arte, não?

Agora considere uma situação hipotética: imagine que os produtores de "Aves de Rapina" tivessem transformado a Arlequina numa mulher que usa roupas pretas e que tem uma personalidade fria e séria. Na certa, surgiriam fãs protestando, querendo a volta da personagem que amavam. E o que isso significaria? Que eles querem de volta a objetificação da personagem? Eles estariam sendo machistas em querer a sua Arlequina clássica de volta? A Arlequina se resume a uma boneca tatuada com a metade da bunda à mostra? Claro que não. Ela é uma personagem completa, tem sua personalidade, sua história, suas manias, e é reconhecida e aclamada por isso. Embora tivesse sido objetificada, ela era muito mais do que isso.

 

Da mesma maneira, é muito arriscado assumir que o fã que manifesta interesse na Lara clássica queira, por consequência, o histórico de sexualização da mulher da década de 90, e não a essência da personagem como um todo – ainda que isso signifique usar um shorts de vez em quando, afinal, a Arlequina também usou um shortinho curto em "Aves de Rapina", assim como a Lara rebootada nos quadrinhos também usou. Diferentemente do que a Crystal Dynamics sugere, sexualização não se resume a peça de roupa, certo?



Imagens dos quadrinhos da Lara do reboot. Uma roupa adequada para quem quer fazer uma trilha num ambiente quente.

Como não faz sentido achar que a existência da Arlequina é um problema em si, também não faz sentido achar o mesmo da Lara clássica. A objetificação de Lara Croft é algo desassociado de sua essência e de sua personalidade. Veja bem, Arlequina grandiosamente levantou a bandeira feminista em Aves de Rapina porque se libertou de um relacionamento abusivo para se tornar emocionalmente independente, e Lara Croft já era símbolo de força feminina na década de 90: ainda que o marketing da franquia a sexualizasse, o contexto dos jogos a colocava como uma personagem forte, independente, dona de suas próprias decisões. Na contramão da maioria das obras de ficção de sua época, ela era a protagonista, não a donzela em perigo.



O que aconteceu com a Lara no reboot de 2013 foi análogo à situação hipotética da Arlequina com roupas pretas e personalidade fria: Lady Croft foi bastante descaracterizada. Então não faz sentido dizer que as mudanças da franquia foram importantes na questão da representatividade feminina. Ok, a personagem não está mais objetificada, mas, de resto, as mudanças não fedem nem cheiram. Reduzir os puzzles do jogo, mudar a personalidade e os trejeitos de Lara, trocar a exploração por tiroteio, tornar a personagem mais séria e menos sarcástica e matar a essência de Tomb Raider não são mudanças associadas à objetificação da mulher nos videogames. Estejamos atentos para não misturar as coisas quando algum fã se manifestar dizendo que “quer a Lara clássica de volta”. Talvez isso possa acrescentar um pouco de qualidade às discussões.


Se alguém diz que gosta da Tempestade dos quadrinhos, qual a primeira imagem que vem à sua cabeça? A personagem em si, com todas as suas qualidades, ou a objetificação do seu corpo?


Por trás de uma grande mulher, há sempre... UM HOMEM??


A Lara Croft do reboot veio cheia de vantagens: pouca ou nenhuma objetificação e nenhum marketing focado em sensualidade. Mas um detalhe importante pode passar despercebido: a personagem é comumente colocada na sombra de outro homem: o seu pai. Especialmente em Rise of the Tomb Raider, a principal motivação de Lara é honrar o nome de Richard Croft. Ela precisa encontrar o que seu pai não encontrou, precisa provar para o mundo que seu pai estava certo, precisa lembrar-se que está ali pelo seu pai repetidas vezes.


Tradução: "Eu não sei explicar. Agora eu entendo para onde papai estava indo".

Isso é algo que particularmente incomoda bastante, não somente em Tomb Raider, mas em filmes como “Assim na Terra como no Inferno”, “Mulher Gato” e “X-Men Dias de um Futuro Esquecido”. São obras que apresentam mulheres fortes e independentes, mas que estão ali de alguma maneira respaldadas em um homem. No primeiro filme mencionado, a protagonista Scarlett Marlowe também é uma destemida arqueóloga, mas o gosto de assistir à história de uma mulher independente é enfraquecido quando ela menciona que está ali seguindo os passos do pai. A Mulher Gato, por sua vez, deixou de ser uma ladra experiente para se tornar uma vigilante, e só “trocou de lado” para honrar o compromisso que ela fez com um policial, que a subjugou e reinvidicou sua vontade na vida dela. Em terceiro lugar, há a Mística do Universo dos X-Men, que, embora extremamente inteligente e habilidosa, passou o filme inteiro tentando decidir qual código de conduta era adequado para ela: o do Professor Xavier ou o do Magneto.


 

Perceba que o contrário não acontece: não é comum você ver homens se inspirando em mulheres ou dedicando suas aventuras a elas. Por que as mulheres não podem ter suas motivações próprias? Por que precisam se espelhar em um homem? Por que a Lara atual interrompe o enredo do jogo várias vezes para dizer algo como “Estou fazendo o que meu pai faria, gostaria, desejaria fazer”? Não há nada de errado em honrar um homem, ainda mais sendo o seu amado pai, mas isso acontece o tempo todo, poxa. Analogamente, não há nada de errado em usar um shortinho, exceto pelo fato de que existe um estereótipo machista que leva as mulheres da ficção a fazerem isso com muito mais frequência do que os homens. Eis o verdadeiro xis da questão. Esse é o problema de quem transforma o shortinho num bode expiatório, sem considerar todo o contexto dos jogos.


Por isso, as questões que envolvem a representatividade feminina são mais complexas do que “essa Lara Croft está certa, e a outra errada”. Não é sobre shorts e calças. Esse pensamento simplista pode acabar privando você de fazer uma crítica importante e necessária sobre os jogos Tomb Raider atuais. A Lara clássica, por exemplo, tinha suas motivações próprias, sejam elas quais fossem. Ela não vivia sob o legado de um homem, mas rejeitou a vida de "dama da alta sociedade" que seu pai queria para ela, para se tornar dona de sua própria vida.


Cena de Tomb Raider The Last Revelation.


Curiosidade: No filme Lara Croft Tomb Raider (2001), os roteiristas transformaram o pai de Lara em arqueólogo. Posteriormente, a Crystal Dynamics apenas seguiu essa ideia na trilogia LAU e na trilogia reboot. Mas a personagem criada pela Core Desing era diferente. Originalmente, a figura paterna de Miss Croft era um homem da alta sociedade, que queria que sua filha se vestisse recatadamente e se comportasse como uma dama, atendendo a todos os anseios da aristocracia. Lara, como você já imagina, recusou tudo. Nesse ponto, a presença dos "shorts e blusinhas" e do comportamento audacioso passaram a ter um significado feminista revolucionário muito forte em sua vida. (Ponto para o shortinho!).


Qual fã é o mais feminista?


Ao longo dos anos, perceberam-se diversos tipos de fãs, que assumiam gostos e comportamentos variados frente ao assunto da sexualização de Lara Croft. É importante saber quem são eles, entender seus pontos de vista, argumentar contra ou a favor e melhorar a qualidade das discussões.

 

Alguns fãs realmente não conseguem aceitar que uma mulher possa usar um shorts num jogo de videogame, atribuindo a peça de roupa a uma “sexualização”.



Esse não foi um bom argumento. Afinal, boa parte do vestuário de Lara na trilogia reboot não faz nenhum sentido. O shortinho só precisa entrar na fila. E sobre a sexualização, já entendemos que ela não se resume a uma peça de roupa. Mulheres usam shorts na vida real, não há sentido em abominá-los religiosamente nos videogames.



Algumas mulheres simplesmente se identificam com uma Lara sexy (que não é sinônimo de sexualizada). Ora, se toda pessoa se espelha em personagens fictícios, porque essas mulheres também não fariam isso? Aqui, cabe uma crítica sobre aqueles fãs que rejeitam totalmente esse “lado” da Lara clássica: atribuir a qualidade de “sexy” como inaceitável, como se não houvesse espaço para todas as mulheres no mundo.



Quantas mulheres gostam de jogar com uma Lara sexy simplesmente porque se identificam com ela?


A autora do post relata que "só usava o vestido rasgado" de Tomb Raider Legend, deixando óbvio que era um traje do qual gostava.


Um terceiro tipo de fã, bastante comum no fandom, é este:




Um pouco de convivência no fandom e você os encontrará em todo lugar. A Lara Croft é praticamente a Lady Gaga dos videogames: lotada de fãs gays. Muitos deles se identificam com uma Lara sexy. E aí acontece a seguinte confusão:



Generalizar os fãs masculinos da Lara clássica comumente resulta em vexame. Isso porque existem gays aos montes dentro do fandom. Você pensa que ele está ansioso por se masturbar vendo as coxas de Lara Croft, quando, na verdade, ele adora os shortinhos da arqueóloga porque, talvez, tem um igual.



Independentemente do seu gosto, se você não concorda com o que o seu colega diz, perdeu a oportunidade de convencê-lo do seu ponto de vista se começar julgando-o como algo que ele não é.  Aliás, pare de supor que todas as pessoas são heterossexuais. Melhor é fazer o seguinte:



Ora, sabemos que os shorts não são o estandarte da sexualização. E não é uma peça de roupa comum que vai decidir se a mulher está objetificada ou não. A Lara rebootada usou shorts nos quadrinhos, e ela não estava objetificada lá. Mas nesse último print, observe que há um incômodo sobre o fato de terem construído Lara Croft sob uma imagem da “mulher de shortinho”, e a autora do comentário relatou que não se sente representada com isso. Certíssima. Ela não poderia ter colocado de uma maneira melhor: a nova Lara atende às expectativas de muitas mulheres que, antes, não se sentiam representadas. Entender isso é muito importante para melhorarmos as discussões dentro do fandom.

 

Há ainda aqueles fãs que, vez ou outra, resolvem fazer um comentário sobre o visual da Lara:



Felizmente, não houve quem problematizasse seu comentário. É um comentário recente. Talvez, se ele tivesse sido feito em meados de 2015, no auge da polarização, teria sido diferente. Provavelmente, o fã teria sido escurraçado por uma militância vazia, que julgaria a palavra “delícia” como uma ferramenta de humilhação das mulheres, em vez de supor que o rapaz apenas se sente confortável naquele ambiente para manifestar seus desejos sexuais. Ora, o uso dessa palavra não significa que ele não respeita a personagem, e não significa que ele assedia as mulheres na rua. Você não sabe nada sobre ele, fique calmo (mais uma vez, vamos parar de supor que todo mundo é heterossexual?). Aliás, Lara realmente está um charme nesse fundo da Grécia, não é mesmo?


O respeito mútuo deve começar ao entender as motivações do outro e evitar julgamentos do tipo “macho escroto” e “feminista chata”, como já aconteceu muitas vezes. Talvez você e o seu colega de fandom tenham muito mais afinidades políticas do que divergências, e você está perdendo a oportunidade de fazer uma boa amizade por causa de um shortinho feito de pixels.


A militância vazia ataca novamente


Nós, fãs da Lara, amamos falar sobre os detalhes gráficos dos jogos. Reparamos em tudo. Sabemos que a Lara passou a dobrar seus joelhos em Tomb Raider angel of darkness (2003), para ajustar a altura de seus pés no chão. Ela inclusive ganhou movimento na franja e nos seios, uma verdadeira evolução gráfica! Reparamos também que em Tomb Raider Underworld (2008), a Lara passou a interagir com a vegetação do ambiente, e passou a rotacionar a articulação dos calcanhares para ajustar perfeitamente a inclinação dos pés em plataformas inclinadas. Você não sabia disso? Os fãs reparam em tudo! Veja só:


Os pés da Lara em uma superfície inclinada, em dois jogos diferentes: Tomb Raider Anniversary (2007) e Tomb Raider Underworld (2008).


Nesse jogo, ela também carrega pedras pesadas, e é possível ver a musculatura de suas costas reagindo a isso! Tenho certeza que os desenvolvedores fazem essas coisas sabendo que os mais fanáticos irão reparar em todos os detalhes. O corpo de Lara muda de jogo em jogo, e os fãs falam dele. Outro detalhe legal é que a Lara ficou musculosa em Shadow of the Tomb Raider. Ganhou massa magra, perdeu gordura. São detalhes interessantes de serem falados, não fosse a militância vazia fazendo seu show online:



De repente, você é doente porque comentou sobre os seios da personagem.



Obrigado, Joyce.

O Verdadeiro Problema

Agora, caro leitor, verifique os comentários dessas pessoas, sobre a escalação da atriz Alícia Vikander como Lara Croft dos cinemas:






Não há muito o que argumentar sobre eles, porque suas colocações não são baseadas em lógica alguma. Parece que, enquanto alguns jogadores admiram a personagem, outros simplesmente priorizam seus peitos. Aliás, você pode amar ver peitos, pode cultuá-los, mas não justifica julgar uma atriz e chamá-la de feia porque ela não te atrai sexualmente.


Observe que há uma diferença gritante entre dizer "eu adoro que a Lara seja uma mulher sexy, cheia de curvas" e "a Lara só é válida se for sexy e cheia de curvas". O primeiro caso é um gosto, uma identificação com uma característica da personagem. O segundo caso é só uma pessoa fazendo merda da internet. Para combater esse problema, você não precisa proibir a qualidade de sexy, mas reforçar que há espaço para todas as mulheres dentro da ficção, tenham elas seios grandes ou pequenos.


Bem, às vezes é difícil combater esses comentários machistas. Quer ver um pior? Prepare o saquinho de vômito:


Chega a ser uma paranoia essa exigência tão restrita sobre o corpo da personagem. É difícil até acreditar que existe uma pessoa que pensa assim.


Talvez a existência dessas pessoas é que cria a militância vazia, aquela que condena um jogador por falar do corpo da personagem, ou por gostar do atributo de sexy. De repente um fã qualquer decide fazer um comentário do tipo: “Nossa, olha como os seios dela são perfeitos”, e é confundido imediatamente com um machista nerd punheteiro hater da Alícia Vikander.



A essa altura, já sabemos que é possível que você goste da qualidade de sexy da Lara sem que isso signifique que você deseja ver um pornô. E o mais importante: se você ainda acha que a qualidade de sexy não é aceitável num videogame, nunca conseguirá expor seu ponto de vista de uma maneira saudável se apenas julgar o seu colega como "nerd punheteiro". Você nem o conhece, oras...

Ensinamentos e Conclusões 

Polarizar significa dividir em polos. No caso das discussões entre fãs de Tomb Raider, esses polos são: (1) os fãs dos clássicos, machistas que querem que a mulher seja sexualizada, e (2) as feministas revolucionárias salvadoras do mundo. Que simplista! Parece até um desenho animado bobo em que o herói do bem luta contra o vilão do mal. A vida real é mais complexa que isso, não caia nessa armadilha maniqueísta.



Você conhece a teoria da ferradura, caro leitor? É uma teoria da ciência política que diz que a extrema-esquerda e extrema-direita não são extremos-opostos, mas se aproximam, como as extremidades de uma ferradura. Bem, este texto não é sobre política, mas podemos pegar emprestado o conceito da ferradura para organizar as ideias que circulam no fandom. Veja como os dois extremos são mais próximos do que parecem:


Observação: essa analogia não tem relação alguma com esquerda e direita políticas. Apenas pegamos emprestado o conceito da ferradura para organizar algumas ideias que circulam no fandom.


Esperamos que essa ferradura seja útil para avaliarmos nossa posição, e tentarmos ser mais moderados em vez de sair dando coices nos fãs (nossa amei o trocadilho).


Toda essa discussão faz parecer que o fandom tem menos gente legal do que ele realmente tem. Não há dúvidas de que temos mais similaridades do que diferenças, afinal, gostamos da mesma franquia, ainda que ela tenha se dividido em um determinado momento. Não é legal chamar seu colega de “feminazi” porque ele disse que não gosta da Lara de shorts. E não é legal chamar seu colega de “macho escroto” porque ele fez um desenho sexy da Lara.

 

No fim das contas, se aprendermos a aceitar o fato de que existem pessoas com gostos diferentes dos nossos, poderemos aproveitar melhor esse ambiente virtual que é o fandom, e quem sabe voltaremos a fazer piadas internas como se nos sentíssemos em casa. Aliás, já estamos fazendo, e estamos orgulhosos disso! Por que não rir de toda essa situação?


Postagens da página Tumba Clássica, no Facebook. Acesse-as aquiaqui.

Verifique a existência de reações de "Haha" e "Amei", e nenhuma de "Grr". Também houve algumas dezenas de comentários, nenhum deles atacando ninguém. Apenas coisas do tipo: "Desculpa, gente, minha Lara é a melhor", ou "gosto das duas", ou ainda "vou continuar enchendo o saco, desculpem". E todo mundo criando um ambiente amistoso, levando na brincadeira. Ponto para o fandom!


Você pode dizer que não gosta de uma Lara ou outra, e ter seus motivos. Seja bem-vindo, mas não deslegitime a opinião do seu colega. Seja mais racional, procure entender porque ele pensa assim. Faça uma autocrítica e tente assimilar o que é fato e o que é opinião. Isso vale para qualquer fã, de qualquer época, de qualquer gosto. Agora a parte mais difícil: tenha paciência para explicar sobre Tomb Raider para aqueles que não falam nada com nada, que não sabem direito quem é a Lara Croft. Mas se não tiver paciência, ignore-os. Talvez uma pessoa com mais paciência que você explique. É melhor do que estragar a oportunidade de um debate saudável dizendo "cala a boca, você não sabe de nada" ou "não gostou, sai do fandom". Tente ser gentil sempre (fica de boa, é só um jogo).



Obrigado por ter acompanhado até aqui. Recomendo, para descontrair, a leitura do texto Os 13 tipos de fãs dentro da treta, que trata das divergências do fandom de uma maneira divertida. Fique à vontade para comentar no espaço abaixo! 


Clique aqui para baixar o pôster que preparamos para este texto, sem tags. Você pode utilizá-lo em suas redes sociais e marcar a Tumba Clássica!

 

Um abraço para todos os fãs, independentemente da Era!

Matheus Philippe e Anderson Grima.


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